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Ser agressivo é ser violento? - Repensando a relação com a agressividade


Foto de Koshu Kunii na Unsplash


COLOCAMOS A RAIVA NO LUGAR DO INIMIGO


Lembro-me como se fosse hoje. Estávamos nos preparando para iniciar uma de nossas reuniões semanais de segunda-feira, regadas a café e pão de queijo. Era um dos primeiros meses de atuação do Instituto CNV Brasil, e já havíamos estudado e praticado juntas por um ano.

No início da reunião, contei sobre uma interação que tive com uma antiga chefe e Liliane respondeu com um largo sorriso no rosto:

"Jade! Você está percebendo? Você está com raiva!"

Aquele sorriso me contagiou, e eu rapidamente mudei daquela intensidade emocional para a celebração:

"Sim! É verdade! Estou com raiva!".

Em 2016, descobri, com o apoio da Lili em um curso com o treinador Marc Avanzo, um enorme desafio em acessar a raiva. Quando ela começava a se aproximar, a emoção rapidamente se transformava em medo ou solidão. Perceber que finalmente conseguia expressá-la foi um marco!

FOMOS TREINADOS PARA SERMOS "BOAZINHAS" E “BONZINHOS”


Com o tempo, descobri que meu desafio em acessar a raiva não era uma experiência individual. Somos sistematicamente treinados para sermos "boazinhas" e “bonzinhos”. Agir com obediência, não dar trabalho, falar baixo, seguir as regras, não fazer pedidos, não reclamar... não sentir raiva. Essas posturas nascem de uma organização social construída com uma lógica muito específica, que nos influencia diariamente.

Essa lógica, a do Paradigma da Dominação, nos ensinou, desde crianças e por diversas fontes, que se cometemos um erro ou declaramos incômodos, experiências tão essenciais como sermos aceitos e pertencentes podem estar em ameaça.

Quais são os impactos disso? Gradualmente nos desconectamos de nossos valores e desejos, afastamo-nos de nossa expressão e vitalidade e, eventualmente, nos adaptamos às coisas "como são", deixando de nos perceber como agentes de transformação capazes de criar o mundo em que queremos viver.

Em algum momento, uma experiência significativa pode nos convidar a sacudir a apatia e acessar a energia de expressar inquietações, desejos, limites, a energia de denunciar injustiças e nos colocar como defensores da integridade humana e da vida em contextos de violência. Não é raro que, em resposta a esse movimento, nos rotulem de agressivos.

A IMPORTÂNCIA DE PENSAR EM UMA AGRESSIVIDADE NÃO-VIOLENTA


Esse é um dos efeitos do Paradigma da Dominação. Dividimos o mundo em duas partes: "nós", as pessoas boas e virtuosas que podem viver bem e prosperar, e "eles", os equivocados e maldosos que devem ser punidos para se redimir. É claro que não queremos ser rotulados como agressivos. Nessa perspectiva, essa palavra é sinônimo de violentos, e esse é um mito que precisamos quebrar.

Arun Gandhi, neto de Mahatma Gandhi, nos convida a reconhecer a importância da raiva como um caminho para a não-violência em seu livro "A Virtude da Raiva". E Jean-Marie Muller, em seu livro "O Princípio da Não-violência", nos encoraja a distinguir os conceitos de agressividade e violência, permitindo-nos pensar em uma manifestação não-violenta da agressividade.

"Na realidade, diante de uma injustiça, a passividade é a atitude mais disseminada, muito mais do que a violência. A capacidade dos homens de resignar-se é consideravelmente maior do que sua capacidade de revoltar-se... A não-violência pressupõe, antes de tudo, ser capaz de mostrar agressividade." - Jean-Marie Muller

A agressividade não-violenta é, portanto, um movimento contrário à submissão e à paralisia, que permitem a perpetuação de discriminações e violações. Na prática, a raiva é uma importante aliada para suscitar a energia necessária para a expressão e proteção da vida e da dignidade humana.

AGRESSIVIDADE: A ENERGIA NECESSÁRIA PARA TRANSFORMAÇÕES URGENTES


Fui treinada desde criança para ser uma menina boazinha, e isso me silenciou por anos quando, durante uma terapia, fui submetida a um processo de "cura gay". Também, na tentativa de sempre manter a harmonia, fiquei paralisada diante de um ataque gordofóbico direcionado a uma pessoa muito querida. São memórias que carrego com constrangimento e lamento.

Por outro lado, os esforços que fiz para reconciliar-me com a raiva e acolher a energia da agressividade em seu potencial não-violento foram o que me permitiram, há dois anos, durante uma discordância entre minha tia e meu padrinho, que rapidamente se transformou em uma competição de quem falava mais alto, levantar-me e, com um grito, dizer no momento em que eles se aproximavam de uma agressão física:

"NESSA CASA NÃO FALAMOS ASSIM! PAREM E SE AFASTEM AGORA!"


Durante a semana do desaparecimento de 25 indígenas da comunidade Yanomami em abril de 2022, eu estava em uma reunião com lideranças de uma organização que atua na defesa dos direitos dos povos indígenas do Brasil, apresentando uma proposta para uma formação em Comunicação Não-Violenta. Um dos coordenadores expressou sua preocupação:

"Nossa realidade é de luta. Recebemos notícias extremamente difíceis todas as semanas, e isso nos machuca muito. Precisamos encontrar uma forma de transformar essa dor em energia de luta. Nossos ativistas precisam continuar lutando. Estou preocupado em falar agora sobre Comunicação Não-Violenta e fazer com que eles parem de lutar."

UMA NOVA RELAÇÃO COM A AGRESSIVIDADE


Infelizmente, essa é uma confusão comum. Quando não distinguimos os conceitos de conflito, raiva e agressividade de nossa compreensão de violência, a não-violência parece ser uma proposta de passividade, inércia, omissão e indiferença.

Conversei com ele e expliquei que a proposta buscava encorajar os ativistas a se conectarem com suas necessidades humanas e com o compromisso de defesa da vida, a lidarem com a raiva como uma aliada e a suscitarem a agressividade para mobilizar união efetiva e ações potentes em prol da garantia de direitos dos povos indígenas.

É portanto fundamental superar a ideia de que a não-violência é sinônimo de passividade e reconhecer a importância da agressividade não-violenta como uma ferramenta essencial para criar o mundo em que desejamos viver.

Autora: Jade Arantes - Treinadora do Instituto CNV Brasil



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